O natural e o tecnológico fundem-se
nas Paisagens Transgénicas de Álvaro Domingues
Raras
são as vezes em que Álvaro Domingues tem encontro marcado com uma paisagem.
“Elas é que vêm ter comigo”, esclarece o geógrafo ao P3, em entrevista por
telefone. Por onde quer que vá, a sua fiel amiga, a câmara fotográfica, nunca o
abandona. Por isso, durante as excursões pelo território português a que o
ofício o obriga, quando se cruza com uma paisagem interessante pára para
disparar. “Gosto quando encontro elementos contraditórios”, refere, dando o
exemplo da fotografia que realizou na Amareleja, um rebanho junto de um
conjunto de painéis fotovoltaicos. O confronto da alta tecnologia com o rebanho
– sendo este último um elemento de elevada carga simbólica, uma vez que remete
para o “início dos tempos”, para “o cordeiro de Deus” — torna essa fotografia
icónica, um exemplo perfeito do que pretende alcançar com o projecto Paisagens Transgénicas,
que esteve em exposição na Galeria dos Paços do Concelho da Câmara Municipal do
Porto e no Triplex, ao abrigo da Bienal'21, Fotografia do Porto,
mas que pode ainda ser visitado online.
O
que é uma paisagem? “Ela não é o que está na tua frente num lugar alto”,
explica o geógrafo, aludindo ao conceito de paisagem que todos temos inculcado,
aquele que inclui o conceito de belo. “A paisagem é um ‘todo’, não obedece a
padrões de equilíbrio ou harmonia – conceitos que surgem associados à estética
do romanticismo.” Esse equilíbrio, harmonia, podem surgir aquando da subtracção
artística – sob a forma de pintura, fotografia, cinema –, mas a realidade é
mais complexa, mais dissonante. “A realidade é um atrapalhar constante de
coisas”, resume. Hoje, quando olhamos uma paisagem rural, vemos elementos que
existem há 300 anos e elementos que foram lá colocados ontem. “É isto uma
paisagem rural do século XXI. Descaracterizou-se.” Por lidarmos mal com este
aparente caos, refugiamo-nos nas “paisagens puras”, adjectiva o geógrafo, nas
que são despidas de elementos disruptivos. Domingues descarta as paisagens
puras e procura o “transgénico” — conceito que importa de outra disciplina para
a fotografia. “O transgénico abalou completamente a discussão científica.
Envolve ética, estética, ideologia, perturbou a ordem natural das coisas.” Essa
‘revolução’ figura, simbolicamente, nas imagens que produz. Domingues quer “dar
a ver a diversidade das coisas”, mostrar que “não há diferenças entre local e
global”.
A
sua fotografia tampouco obedece a conceitos que associamos ao belo ou
harmonioso – o enfoque está na semiologia da imagem, ou seja, nos elementos que
nela constam e no significado que assumem na relação entre si e entre o todo e
as expectativas de quem olha. “Na sociedade em que vivemos, os padrões de
beleza são tão diversos que deixa de fazer sentido obedecer a qualquer tipo de
preconceito”, explica. Não se considera um fotógrafo na acepção clássica. “Eu
cruzo o artista com o investigador, com o geógrafo, e vivo bem com o cruzamento
desses papéis.”
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