1 de dezembro de 2018

Emília Sande Lemos em entrevista

Emília Sande Lemos
Licenciada em Geografia, 1974 pela Universidade de Lisboa.
Mestre em Psicologia e Metodologias da Educação, 2001, (FCSH-Universidade Nova de Lisboa).
Professora do ensino básico e secundário desde 1973.
Sócia fundadora da Associação de Professores de Geografia e Presidente da Direção (1994-2018). Membro do Conselho Consultivo do Currículo Nacional do Ensino Básico, do Conselho Nacional de Educação, do Conselho Científico do IAVE e cocoordenação da proposta de Aprendizagens Essenciais da Geografia nos 12 anos de escolaridade, homologadas pelo Ministério da Educação (2018).

1 - Comente um livro que o marcou ou cuja leitura recomende
Escolher um livro é sempre uma tarefa difícil, pois várias são as obras que me influenciaram, quer a nível pessoal quer a nível profissional. Em relação ao primeiro aspeto gostaria de destacar as obras de Mia Couto, porque, como africana que também sou, retrata, de forma extremamente criativa, a cultura africana, bem como a sua relação com um território com especificidades muito próprias, ambas tão mal conhecidas em Portugal. A obra de Yves Lacoste, “A Geografia serve, antes do mais, para fazer a guerra” foi uma revelação, a afirmação por um geógrafo de renome mundial, da importância política da Geografia, da importância do conhecimento do território. 

2 - Que significado e que relevância tem, no que fez e no que faz, assim como no dia a dia, ser geógrafo?
Durante a minha infância e juventude, “oscilei” entre dois “mundos”. Nascida em 1951 em Luanda, neta de um colono que chega a presidente da Câmara Municipal de Luanda e de outro avô, residente em Portugal, padeiro, anarco-sindicalista, vivo em Luanda, na cidade “branca”, dentro da redoma de uma certa elite, mas cedo visito a “Metrópole”, e o meu avô, na prisão de Caxias.  Nas incursões que faço a Portugal de quatro em quatro anos, contacto com outras paisagens, uma outra cultura quotidiana. Foi, sem dúvida, este um aspeto que muito terá influenciado a minha ida para o curso de Geografia, bem como uma consciência subliminar, mais tarde confirmada ao longo do curso, que esta Ciência tem uma forte componente política, social e cultural.
Como professora de Geografia considero portanto fundamental a escolha de metodologias e conteúdos que permitam uma aprendizagem significativa, o desenvolvimento de competências de criatividade, consciência crítica e cívica, o que é, sem dúvida, um trabalho extremamente difícil e que exige muito mais horas de preparação de aulas do que as que atualmente estão consagradas na lei. Mas o esforço é muito gratificante, como quando verificamos, por exemplo, que uma aluna ao fim de três aulas de debate e pesquisa, nos diga: “stora é mesmo muito difícil classificar de forma simplista um país em desenvolvido ou em desenvolvimento” ou, após simular o julgamento de um imigrante clandestino em França (baseado numa história real) e, perante o depoimento muito sentido de um dos alunos, ver o imigrante ser absolvido do seu suposto crime de “imigração clandestina”. 
Na minha ótica, a Geografia, porque olha o Mundo de uma forma multiescalar e multidimensional, é a disciplina “perfeita” para educar os nossos jovens para um Mundo cada vez mais VICA – volátil, incerto, complexo e ambíguo, onde, mais do que saber conteúdos, é importante ser capaz de relacionar, problematizar, empenhar-se, participar e envolver-se. 

3 - Na interação que estabelece com parceiros no exercício da sua atividade, é reconhecida a sua formação em Geografia? De que forma e como se expressa esse reconhecimento?  
A importância social da Geografia, seja na escola, seja em outros setores da sociedade, está muito dependente da vontade conjunta de todos os professores de Geografia e geógrafos de dar a conhecer, através dos mais diversos meios e atividades, o valor da nossa Ciência. Nesta tarefa, os professores de Geografia dos ensinos básico e secundário e do ensino de adultos têm um papel relevante, bem como a Associação de Professores de Geografia e a Associação Portuguesa de Geógrafos. Não tem sido um trabalho fácil mas, sem dúvida que, em muitas escolas, os docentes de Geografia, ocupam lugares de destaque, coordenam projetos e, a nível do Ministério da Educação, Conselho Nacional de Educação, Comissão de Educação da Assembleia da República e IAVE, a Associação de Professores de Geografia tem tido um papel muito ativo, intervindo e estabelecendo numerosas parcerias quer com outras ONGs quer com empresas privadas e outras instituições. 

4 - O que diria a um jovem à entrada de Universidade a propósito da formação universitária em Geografia, sobre as perspectivas para um geógrafo na sociedade do futuro? E a um geógrafo a propósito das perspetivas, responsabilidades e oportunidades?
É hoje reconhecido internacionalmente que o conhecimento do território, seja através das TIG(s), quer dos “tradicionais” mapas que tantos jornais gostam de editar (e nos demonstra como, numa simples folha de papel, se pode conhecer tanto), tem dado à Geografia uma visibilidade que até aqui não existia. Seria isto o que eu diria desde logo a um jovem que gostasse de Geografia e quisesse ingressar num curso de Geografia. E, mais do que isso, mostrar-lhe-ia, como, no Mundo global, qualquer decisor, seja a nível local ou mundial, precisa de conhecer a cultura e o território de cada povo, as relações que mantêm entre si, os jogos geopolíticos que norteiam o quotidiano do nosso planeta, a importância de saber responder entre outras questões a perguntas tão fundamentais como: Onde se localiza? Porque se localiza ali? Que consequências tem essa localização? Para os que já estão a exercer como geógrafos creio que seria mais do que suficiente lembrar que sem um olhar geográfico não é possível compreender e vir a prevenir/mitigar, por exemplo, os terríveis incêndios que ocorreram em Portugal em 2017.

5 - Queríamos pedir-lhe a escolha de um acontecimento recente, ou um tema atual, podendo ambos ser do âmbito nacional ou internacional. Apresente-nos esse acontecimento ou tema, explique as razões da sua escolha e comente-o, tendo em conta em particular a sua perspetiva e análise como geógrafo.
Duas questões que de alguma forma se interrelacionam, acolhem a minha atenção quase quotidianamente: a geopolítica do Médio Oriente e as migrações entre a Ásia Menor/África e a Europa, via Mar Mediterrânio. Como ser humano choca-me a hipocrisia de uma Europa envelhecida, à procura do seu velho esplendor, que recusa estes jovens empreendedores, que atravessam territórios hostis, como o Sahara e/ou o Mar Mediterrânio, sem quaisquer meios, e que deveriam ser acolhidos como seres humanos preciosos para o renascimento do nosso envelhecido continente. Como geógrafa não me é difícil entender estas migrações, há tanto anunciadas, bem como toda a complexidade espacial, temporal e sociocultural que envolve os diferentes povos e culturas do Médio Oriente, pois todas as perguntas essenciais que um geógrafo deve fazer, nos conduzem a respostas complexas, mas muito interessantes de analisar com um olhar geográfico.

6 - Que lugar recomendaria para saída de campo em Portugal? Porquê?
O bairro da Cova da Moura, na Amadora. Já tive ocasião de o visitar diversas vezes, quer através da minha escola, a Secundária da Amadora, quer em visita de estudo de um Seminário Nacional de Professores de Geografia. Através da Associação Moinhos da Juventude, jovens e docentes podem refazer as suas perceções sobre um bairro, geralmente tão maltratado pela comunicação social, no sentido de melhor compreender a multidimensionalidade das comunidades e dos seus territórios.

Entrevista à Associação Portuguesa de Geógrafos.

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